Reflexões sobre preservação audiovisual | 10 anos da CineOP.
Hernani Heffner; Raquel Hallak d’Angelo; Fernanda Hallak d’Angelo. (Org.). 1ª ed.: Universo. 2015. p. 41-43.

A resposta lenta dos arquivos para as mudanças tecnológicas está gerando grandes desfalques no patrimônio audiovisual – os primeiros títulos brasileiros lançados exclusivamente em digital ainda podem ser acessados? E jogos eletrônicos? E campanhas transmídias dos blockbusters? A preservação audiovisual digital, seja ela de conteúdos originados digitalmente – para cinema, televisão, obras de mídia arte, jogos, aplicativos, gerados na Internet ou dispositivos móveis –, ou digitalizados a partir de filmes ou vídeo, é um tema frágil, principalmente devido às questões comumente conhecidas como a deterioração e obsolescência de formatos de arquivo, software, e hardware, desaparecimento de informação, gerenciamento de metadados e migração.
Instituições de guarda de memória estão ligadas à preservação de mídias em formatos consolidados, e portanto, é difícil a incorporação de um novo escopo de materiais, ainda mais quando o rápido surgimento (e desaparecimento) de diferentes suportes não é acompanhado por um formato standart que permita sua preservação. Por muito tempo, as discussões em arquivos fílmicos eram dominadas pelo conceito de que “o fotoquímico era simplesmente melhor do que qualquer outra coisa” (Mark-Paul Meyer, 2005), operando com ceticismo em relação ao advento do digital. Com o desenvolvimento tecnológico e a transformação da produção, distribuição e exibição cinematográficas, o posicionamento dos arquivos mudou. A conscientização da necessidade de preservação do patrimônio digital é indicada por inúmeras investigações acadêmicas e técnicas, e projetos, como PRESTO, o seminal OAIS Reference Model e a publicação The digital dilemma (AMPAS, 2007). As práticas e os conceitos de arquivos em tempos digitais foram objeto de exame dos congressos da FIAF de 2006 e 2010, e no livro From Grain to Pixel (Giovanna Fossati, 2009).
Atualmente usuários têm grande expectativa de que o acesso à materiais de arquivo deva ser rápido, online e gratuito. O acesso deve ser promovido em materiais de baixa qualidade em prol da ampla difusão ou a autenticidade deve ser preservada? Promover o acesso sem critérios pode gerar a descontextualização, gerando uma “idade das trevas digital” (Paolo Cherchi Usai, 2008; “digital dark age” no original). A restauração de obras é outra questão a ser debatida em torno da mudança na indicialidade do analógico para o digital, em parte pelas infinitas possibilidades da ferramente digital.
Para além do campo cinematográfico, as práticas sociais hoje são mediadas através de dispositivos audiovisuais, onde loops de seis segundos e GIFs animados fazem parte de uma nova linguagem. Informações criadas e disseminadas em redes sociais são importantes manifestações culturais (William Uricchio, 2007), e estão fora do âmbito de coleta de instituições arquivísticas tradicionais, correndo o risco de esvaecimento. O mesmo ocorre com imagens registradas por midiativistas retratando a violação de direitos humanos por empresas privadas e agentes governamentais. A mídia digital mudou profundamente a dinâmica das comunicações e protestos, e hoje redes sociais são massivamente usadas como ferramenta na organização de movimentos políticos, e são documentos fundamentais para entendermos a década de 10. Os desdobramentos de manisfestações audiovisuais no campo digital se somam assim ao gerenciamento de coleções previamente existentes, como película, vídeo e documentos correlatos, transformando as práticas de arquivo e sua conceituação teórica, e logo deve abarcar financiamento e políticas especificas.
A preservação basea-se em procedimentos, princípios e técnicas dirigidas a manter a integridade do documento audiovisual e o potencial de sua experiência intelectual (Carlos Roberto de Souza, 2009), onde a preservação e acesso são interdependentes, sendo importante o conteúdo, forma de exibição, funcionalidade, origem, informações correlatas e contexto. A autenticidade deve ser cumprida de acordo com sua integridade em bytes, o que exige combinações de software e hardware, para ser armazenada e renderizada. Nas últimas décadas, formatos e sistemas audiovisuais tornaram-se obsoletos. Obras de arte arcaicas podem ser acessadas (mesmo que destacadas de seu contexto original), mas o conteúdo de um disquete torna-se indisponível devido à obrigatoriedade de intermediação de um dispositivo de leitura. A obsolescência de mídias não se deve pela decadência da funcionalidade, mas sim ao contínuo desenvolvimento da tecnologia por parte da indústria, e da falta de padronização de arquivo, software, hardware, e, consequentemente, afetando o conhecimento relacionado a cada um daqueles. A manutenção de tecnologia obsoleta é tarefa central de práticas de preservação a longo prazo para arquivistas audiovisuais (Ray Edmondson, 2004), e o desafio de incorporar tecnologia emergente e a manutenção de mídia residual torna essencial a relação entre indústria, arquivos, e pesquisa acadêmica e científica. O conteúdo audiovisual digital hoje pode ser preservado através de macro e micro-estratégias: uma combinação de poucos benefícios e muitas desvantagens, listados a seguir.
A fita magnética LTO é o formato dominante para a guarda de dados digitais, hoje na 6a geração, com até cerca de 4TB de dados, e o conteúdo pode ser gerenciado manualmente ou em bibliotecas robotizadas. O armazentamento em LTO pode ser considerado uma ação de preservação de curto/médio prazo, necessitando planos de atualização de software e hardware, aquisição de novos cartuchos, migração do conteúdo a cada cinco anos, gerenciamento de metadados, assim como cópia de segurança (em diferentes edifícios, cidades, países), tendo como vantagem o preço, economia de energia, taxas de transferência altas com baixas taxas de erro, possibilidade de compactação e criptografia. Entre desvantagens, a gravação de dados de forma linear, acesso constante não recomendado, acesso é demorado, incompatibilidade do equipamento de gravação e leitura com as gerações futuras, cartuchos sensíveis ao manuseio, condições climáticas, campos magnéticos e impulsos electromagnéticos. Por outro lado, discos rígidos são utilizados para conteúdos acessados com frequência, mas possuem maiores taxas de erro do que LTO, seu ciclo de vida não é facilmente determinável, além de susceptibilidade à corruptibilidade de arquivos. Um recurso de segurança é o uso de RAID (Conjunto Redundante de Discos Independentes), um espelhamento de dados entre discos. Um servidor é alternativa para conteúdos que precisam ser acessados por vários usuários, mas seu gerenciamento é menos seguro, e é menos portátil do que discos rígidos. A terceirização de serviços de armazenamento pode ser cômoda, mas perigosa sobretudo por sua descontinuação (por extinção do serviço ou pela exclusão de dados pela falta de pagamento). Recentes pesquisas apontam soluções de armazenamento de dados digitais em sequência de DNA, que poderia ser decodificada e acessada daqui a séculos, mas não é ainda uma opção de preservação em larga escala.
O micro-gerenciamento de dados digitais envolve inúmeras atividades como controle (manual e automático) das ferramentas supracitadas, monitorar a integridade e gerenciar diversos formatos de arquivos, preferencialmente não-comprimidos (se atentando para CODECs, framerate, proporção de tela, resolução e bitrate), gerenciamento de metadados, atualização de softwares e plug-ins, e a constate migração de dados a médio prazo. A catalogação torna-se ainda mais desafiadora na mídia digital – hoje arquivos estão mobilizados em adaptar sua base de dados, ou adotando soluções prontas (como Adlib). A documentação dos fluxos de trabalho e das escolhas de procedimentos são cruciais para futuros arquivistas.
Atualmente não há formato digital com as características de longevidade equivalentes à da película. A preservação de algumas produções dos EUA e França (no âmbito de seu depósito legal), ainda que geradas e exibidas em meio digital, se dá pela criação de negativos com separação de cores. Ressalto ainda que armazenar dados em disco ou LTO per se não constitui uma ação de preservação; somente através da sua constante manutenção e migração que se é possível garantir sua preservação. Bem como na plataforma analógica, a preservação de aparelhos de criação e reprodução de imagens em movimentos deve ser um dos campos de atuação do setor.
O campo da preservação audiovisual no Brasil passa por um período de maturação, ao fim de muitos anos de ações individuais e institucionais (Maria Laura Lindner, 2014). Enquanto isso, a produção de cinema e televisão está em um momento prolífico para seu financiamento através de recursos públicos, em especial o FSA, gerido pela Ancine. Como resultado, o aumento no número de obras brasileiras produzidas e distribuídas em telas brasileiras, e em festivais ou distribuição internacional – e portanto, um aumento de obras a serem preservadas. O apartamento dos significativos recursos do FSA revela que a preservação audiovisual, elemento fundamental para a composição da indentidade cultural e da memória, não está circunscrita na cadeia cinematográfica pelo mercado e governo federal.
A descontinuidade do processo fotoquímico e o esvaecimento de seu saber técnico é um desafio para a cultura cinematográfica e as práticas de arquivo. Mas esta talvez não seja a consequência mais drástica do advento do digital. O expressivo volume de documentos audiovisuais a serem preservados introduz novos desafios, requer abordagens inovadoras, bem como distintos fluxos de trabalho, ferramentas, recursos financeiros, experiência e infra-estrutura. A mídia digital é instável e sua aquisição, preservação e manutenção são meticulosas, custosas e complexas. Em suma, torna-se premente o estabelecimento de políticas de preservação consistentes para que o conteúdo audiovisual digital seja preservado, e seja possibilitado seu acesso como fonte de informação, educação, cultura e entretenimento. O digital não vai esperar!